Ei química, eu não te escuto mais

13/08/2016

Ei, você!
Quanto tempo! Estivemos juntas por muito tempo, não é mesmo?
Me lembro do dia que nos conhecemos.
Após a aula, minha avó me levara em um salão pela primeira vez. Eu estava lá porque no dia anterior uma menina na escola havia me chamado de "cresbunda" (o cabelo que eu tinha na cabeça, ela tinha na bunda), e prática como a minha avó sempre foi, ela ergueu minha cabeça cabisbaixa, e me olhou nos olhos e disse "Levanta a cabeça, a gente vai resolver isso", do jeito que minha avó sabia, ela tomou as rédeas da situação.
Depois de duas horas sentada numa cadeira giratória, me sentindo um pouco intimidada no salão chique, tentei seguir as orientações "Senta reta e fica bem quietinha". Meus olhos e a cabeça ardiam do produto verde gosmento que uma moça de sorriso gentil passou no meu cabelo, e foi aí que eu te conheci.
Na distância de dois braços de mim, me encarando do outro lado do espelho, nós nos saudamos com um sorriso largo. Eu no auge dos meus seis anos de idade, senti que finalmente me enquadraria. Não havia nenhuma ondulação que me separava da "igualdade" e do "belo". A professora finalmente poderia passar a mão no meu cabelo, como ela fazia com todas as outras meninas. Desse dia em diante, nos tornamos inseparáveis, não é mesmo?!
Eu lembro de você, quando periodicamente mediamos com raiva a raiz no espelho, não vendo a hora de passar o produto "mágico" de novo. Você esteve comigo quando ainda assim, faziam piada comigo na escola, porque meu cabelo não era "baixo o suficiente". Foi aí que começamos o combo relaxamento+ progressiva a cada dois meses, junto com a escova e prancha, toda semana.
Juntas, olhávamos encantadas os longos cabelos naturalmente lisos ou levemente ondulados das amigas. No fim, sempre batia aquela pontada que nunca seríamos assim.
Com você, as piscinas ficaram cada vez mais raras com o passar dos anos, assim como danças na chuva. Nas férias passar uma semana na praia era basicamente um pesadelo capilar, afinal significava sete dias com tudo aquilo que eu tinha na cabeça preso, num coque firme.
Lembra quando tínhamos que mapear na semana quando ia marcar a data do salão? Porque tinha judô duas vezes na semana, e isso significava dolorosamente "adeus, escova" e ela tinha que durar o máximo possível.
Nós tivemos nossas divergências, como no dia em que você concordou com a minha colega quando ela disse " X é bonita, mas ela tem que dar um jeito no cabelo dela. Horrível, parece bombril."
Ou quando minha amiga discordou da descrição do personagem que eu havia escrito dela porque o cabelo da personagem "parecia crespo".
Você leu comigo todas aquelas sagas de jovens de "Longos cabelos castanhos" que prendiam preguiçosamente o cabelo em um coque frouxo e a pele era alva.
Você viu comigo todos os filmes, em que negras eram as empregadas, as melhores amigas de duas falas, ou a cabelereira descolada. Você, sussurrou no meu ouvido "Ei, isso é normal. Elas não são bonitas o suficiente", tentando acalmar o descontentamento e minha inconformação.
Você repetiu essa frase, várias vezes, até que eu passei acreditar. Afinal, eu só via isso. Eu só conseguia perceber meu redor na sua verdade. Amaldiçoei dezenas de vezes meus antepassados com ira, por culpa deles eu era assim. Minha pele era escura demais. Meu cabelo duro demais. A boca muito grande. O quadril muito largo. Você do outro lado do espelho, confirmava tudo isso.
Precisaram de algumas várias aulas de histórias sobre a continente africano, de aulas de geografia sobre desigualdade, aulas de português com professoras que falavam sobre preconceito, sobre padrão de beleza eurocêntrico para eu ver, a verdade. A verdade que você estava errada. O tempo todo.
E me perdoe o palavrão ,mas PUTX* MERDA, foi muito quando essa ficha caiu. Na mesma época, em que comecei a ver mulheres abraçando o seu corpo. Levantando a bandeira da negritude e sim, que o afro é lindo e é PODER.
O engraçado foi, quando fomos relaxar o cabelo mais uma vez, como sinal dos deuses, que adoram ensinar por tragédia, minha cabeça foi queimada brutalmente pelo produto. Você tentou me acalmar, porque as feridas não permitiam eu pentear o meu cabelo, porque sangrava cada vez que tentava ajeitá-lo. Foi então, que vi, que nós duas juntas não dava mais certo.
Dois anos atrás eu decidi, lhe dizer adeus. Foi difícil tomar essa decisão, mas foi extremamente libertador, você não dominava, apenas meu corpo, e sim minha mente e meu comportamento. A caminhada foi árdua, descobri que 13 anos se diminuindo, e com autoconfiança abalada precisa de um esforço danado para criar uma base mais sólida, precisei estudar muito e de muita ajuda. Mas hoje, sem qualquer traço de você, sou mais do que qualquer dia fui. A transição capilar me permitiu ver a importância de se perceber como negra, de levantar a bandeira dos meus ancestrais, de exaltá-los pela sua resistência, empoderamento é uma coisa linda, você não tem noção.
Envio, essa carta para o passado, para as fotografias antigas, por que você não pertence no meu presente e nem mesmo no meu futuro. Afinal, não há alegria maior do que olhar o meu reflexo e finalmente me ver, me enxergar, por fora, como reflexo de dentro, e melhor sem qualquer fragmento de você.
Então, um beijo para a Ana( lisa), amônia, guanidina, para meus preconceitos, para o secador e chapinha, não quero ver vocês nunca mais!

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